domingo, 26 de setembro de 2010

Liberdade Clandestina

Eu, na verdade, consigo me lembrar de muito pouca coisa, assim, quando tento pegar pelo fio solto da lembrança, assim, de supetão, assim, do nada. Às vezes, parada, quase dormindo porque gosto muito de dormir, e nem sei se por causa dos sonhos que devo ter (que na verdade são recorrentes, se prestar bem atenção, mas imensamente difíceis de recordar), aí me vem um fustigado lá no bem-dentro, lá bem aqui onde não sei precisar e um pedaço do passado me aparece todo faceiro, todo querendo impressionar. De qualquer forma, de tão espevitado que me vem, não se mostra um fato, mas um pequeno recorte de algum momento. E foi assim que aconteceu, enquanto voltava para casa de carro com a minha mãe.


- Esses meninos parece que não pensam direito.

- É, eles ficam andando no meio da rua. – bastante entonação no “meio”, daquele jeito que ela tinha de reprovar ou aprovar todos os outros com o tom da voz, às vezes só com a respiração.

Mas acontece que eu não me referia a isso e isso, de repente, tomou mais importância do que aquilo em que estava pensando quando critiquei os garotos no meio da rua.

***

Lembro com certa clareza de sonho, de cheiro perdido no tempo, a hierarquia da infância. O medo de agir fora da norma, como se minha mãe estivesse sempre a postos com a chinela na mão – e não era proibido dar umas boas palmadas em crianças que não agissem conforme o indicado – e aquele olhar suficiente. Uma pequena contravenção era um prato de guloseimas sem fim, que, embora se comesse apressadamente para não ser pego no desvio, identificava-se cada sabor, cada textura, com o coração aos saltos e um nó na boca do estômago. Era uma emoção só.

E, o mais importante: o medo não impedia. mas os joelhos tinham de aguentar firme.

***

A rua onde eu morava ficava bela e quase deserta durante as tardes, as sombras das árvores desenhando belas as imagens no asfalto e duas ou três pessoas nas calçadas, a mercearia aberta numa preguiça esticada e eu. Meu caminho se limitava a atravessar três calçadas para comprar bala. Tinha um real para isso, era a felicidade. Minha mãe esperando confiante, enquanto assistia à TV. Seu olhar em minha nuca, todo o tempo e eu, nem por um momento, conseguia me livrar dele.

As calçadas de cimento não eram largas, mas não eram estreitas: calçadas de subúrbio – ou, pelo menos, do que eu penso ser subúrbio. Fui. Atravessei a rua, apenas para atravessar e voltar. Talvez ninguém compreenda a liberdade que aquilo significava.

Balas nas mãos, bala na boca, nenhuma bicicleta, nenhum cachorro e a rua toda com cores que nunca conseguirei descrever. Ninguém a me observar, a não ser o olhar imaginário em minha nuca, e a iminência do ônibus. Era o perigo e o proibido. Aquilo tudo deu um nó em todo o meu corpo – e ainda sinto a mesma vertigem algumas vezes, embora muito mais raro.
Um pé. Outro pé.

Pronto, estava andando na beirada da rua, quase ainda na calçada e a vontade de errar querendo sair de mim. O meio da rua era meu por três calçadas e um segundo que nunca mais acabou.

***

E herdo da Clarice a dúvida sobre a duração do tempo.

3 comentários:

Carola disse...

Adorei...senti cheiro de infância e as dores das perebas das traquinagens!Que por sinal,ainda me marcam as canelas!huiahiuahiuah beijooo!Amiga talentosa!

Fernando de Souza disse...

Memória, mas memória mesmo, é um patuá de couro de bode que se leva no bolso e se conjura pra se continuar entendendo a pobreza do presente.
Eu me identifiquei muito com essa crônica, xuxu.

Thorin disse...

Esse texto me trouxe justamente a felicidade nostalgica das balas compradas com 1 real. O tempo em que dinheiro era a ultima das nossas preocupações...

Histórico


as primeiras ideias...