domingo, 14 de novembro de 2010

Mandala

Essa noite ela parou. Percebeu em seu quarto, em sua janela aberta, no pedaço de céu entre a grade e o muro, no pequeno espaço onde cria sua inquietude, a plenitude de que não desfruta mais. Percebeu a saudade e, ainda mais forte, a vontade. Percebeu que poderia, sem falha de memória, sentir os cabelos castanhos, curtos, macios e sempre, sem dias atarefados, cheirosos... os cabelos castanhos que prolongavam-se pelo rosto, aparados, limpos, comportados e, tocando-lhe o ventre, eriçavam suas vontades e sua temperatura e sua juventude e sua feminilidade. Percebeu a curva dos lábios finos, carentes e carinhosos e dos dentes que nos seus lábios deixavam sempre a marca apenas perceptível pela fome úmida. E a voz que, saindo dessas curvas, desenhava no tempo o nome dela e todos os ensinamentos que ela sorvia como a uma bebida embriagante, que ela sentia penetrar-lhe a vida sem retorno. Sem culpa. Sem pressa. Apenas jogando no bolor das horas mais quentes da tarde, quando o suor escorria pelas costas desnudas e pelo peito vivo, o (re)conhecimento de 20 anos à frente.



Essa noite, olhando pela janela aberta, lembrou-se de um seu caderno perdido, de uns seus escritos proibidos, de umas estrelas de papel – que, hoje, só devem existir na sua memória sempre apaixonada – dentro de uma caixa de óculos, no criado-mudo ao lado da cama, bem perto do Nietzsche e da janela ampla, clara, de vidro, de muro, de estacionamento lá embaixo. A janela que escondia a bela sinfonia de todas as tardes, após o almoço, quando, com aquelas mãos de longos dedos pálidos, amarelados, ele executava em sua essência curiosa harmonias tocadas com as pontas rosadas dos dedos firmes, decididos, apaixonados. Com a delicadeza de quem acolhe em sua palma um filhote perdido e, tirando de sua vontade as notas necessárias, insere no peito a melodia de uma tarde que nunca acaba, que nunca volta, que nunca mais e que sempre. A melodia insondável da simbiose que, juntos, descobriram numa única tarde, num único momento de sonolência profícua, quando, pelo hálito, comungaram o sonho justo dos que, na confluência de desejos e sonhos e planos comuns, flanaram docilmente.

Parou porque os três anos que os separavam mostravam-se tal maneira intransponíveis e indissolúveis e inexistentes, qual o tempo e suas puerícias; porque os três anos que anunciavam-se enterravam ainda mais fundo o toque, a vontade e todo o aprendizado, ainda mais fundo as tardes quentes e as febres e os passeios desejados por Portugal e pela Itália, ainda e ainda e ainda mais fundo a música que, vinda dos lábios dele, parecia inundar toda a vida dela... sing to me, sing to me... e a inundava porque vinha dele e de sua habilidade em escrever-lhe eternamente as peripécias, muito embora não conseguisse dela as confissões; porque esses três anos eram, para ela, apenas uns três malditos, sofridos e solitários segundos desde a hora em que, covarde, foi-se embora sem palavra que preservasse a fecundidade daquele solo, sem gesto que, cuidadoso, revirasse o humo, conservando, dessa maneira as possibilidades. Covarde, foi-se embora sem um gesto decente de adeus e, insegura, matou, talvez eternamente, a cumplicidade do hálito e o cheiro do café e o calor febril e adoentado das tardes e o flanar por cômodos pouco mobiliados e o olhar através do disfarce e o tocar a campainha ansiosa e o sentir-se segura acalentada adotada acolhida... e o aprendizado e... os pés vestidos, os pés sempre vestidos.

Parou porque todas as outras vozes que a invadiram apenas clareavam ainda mais a certeza de que nunca mais seria inundada; a certeza de que não controlava nada, eram peristaltices, eram convulsões, dois meses de delírios febris e irreais. Principalmente, parou porque a envolveu a certeza de que, embora a falta fosse latente e a incompletude gritasse plenos pulmões dentro de toda a sua certeza consciente, não seria certo transpor a barreira desses três anos e expor-se frágil, delicada, entregue com as costas na cama e os joelhos flexionados. O ritual tão repetidamente belo, como ele costumava dizer e fitá-la por demorados minutos antes de pesar por sobre ela toda a sua maturidade e sabedoria e paz. Sobre ela que o inebriava de certezas e fortalezas e devaneios e labirintos e inocência velada. Não seria certo destruir o tempo fúlvido que esses três anos mumificaram, e manchar de óleo impuro o quadro tão perfeito que ela tinha do amor; e manchar a perfeita imagem perdida de sua puerícia, largada no azul daquelas tardes quentes, regadas a café.

Histórico


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