domingo, 26 de setembro de 2010

Amélia quando era mulher de verdade

Aprontava-se, agora: unhas pintadas e flor no cabelo. A coluna ainda cansada. As coxas ainda sedentas. Os pés ainda ainda. Aprontava-se os lábios e os cílios e os grandes olhos redondos. Aprontava-se a expectativa sempre platônica, sempre um sopro que vai além da última fronteira imóvel, carregando em seu dorso qualquer poeira embolada; sempre sorriso de dentes e lábios treinados para o convite – árdua (in)disciplina de todos os dias.

Aprontava-se.

O conjunto da obra já nem era tão ela assim – não lhe pertenciam aqueles lábios sempre maiores, nem aqueles pés inquietos ou aquela vida toda ondulante sedutora mentirosa embriagada-formigante. E os lábios convulsos.

Os olhos.

A boca.

A face.

Os lóbulos.

Aprontava-se. Arrumava-se. Preparava-se. Permitia-se.

Era sua maneira de deitar em paz e descansar suas culpas nos travesseiros do mundo. Sua fórmula de liberação alcoólica dos quadris a qualquer ritmo, a qualquer samba – sempre um mestiço forró entre as coxas.

Nos cílios alongados, sua única luxúria: a noite que se estendia presunçosa e a vontade. A vontade acumulada e reeditada de balançar-se mundana.

Era, entretanto, uma daquelas vezes. Quando o algodão paira no ar e quase-toca a onda mansa, sem espumas, sem plantas. Apenas a água corrente que carrega consigo a iminência de molhar o algodão que paira tão distante de sua origem. tão turista. e tão pertencente a toda aquela paisagem de ondas mansas e areia sem búzios. A ausência promissora de empecilhos, de problemas, de mães. As chances que se acumulam por todos os espaços imaculados e acariciados pela água salgada mansa discreta que quase-toca o algodão.

A volúpia palavras e palavras descrita. A frase mansa e limpa, sempre perseguida, sempre preguiçosa, sempre pecadora: sua oração. Sua prece em pedras ajoelhada – curto tempo, e todas as suas dengosas madeixas na cor acobreada do atrevimento, curto. Jazia a sua vida e ela se aprumava os ombros nus e as saliências.

Sem tempo porque o tempo não existe, não mais, não ainda. não para ela. Sua certeza latente de que o tempo finalmente deixara de existir, ou, pelo menos, de que todos os ponteiros e todas as insossas areias do mundo tinham parado para o café. E o seu movimento prosseguia impune, indelével. Livre do tempo que, uma vez ignorado, passava a inexistir tranqüilo e etéreo.

Manhosa que era.

Na carteira, os resíduos do tempo, que já quando era ele, ele mesmo não o sabia, de sua cubanisse fugidia – não como os perseguidos charutos, mas como os perseguidos. Na carteira, encerrada no fundo das bolsas, o registro de quem é. era. Naquele momento em que os verbos deveriam seguir os ponteiros e as tais areias insossas. Naquele tempo em que os verbos eram a força e não os forçados. Apátrida.atemporal.livre.libertina.bailarina. Fogosa e afogueada pelos sonhos de todos os outros cubanos de ponteiros em marcha. Até o primeiro raio matutino, até a última nota, até os pés inchados e sujos e cansados... último suspiro do amante esgotado, incrédulo dos quadris alcoolizados. Último contato, último último.

Último, enfim. E o passado não registrado, não carimbado, livre dos olhos agudos do tempo, deixa assim de ser real e passa a ser apenas a sensação da satisfação inexplicada (inesperada). E, sem a história a ser contada, posto que nada existiu, resta a ela, melindrosa, meninosa, guardar o atrevimento em bem quisto rabo-de-cavalo, o dengo em boa e ereta postura de tornozelos cruzados. Olhos educados, floreia o livro com suave sorriso escondido, um mar carente de algodões.

Um comentário:

Daniel Leão disse...

valha me deus
rsrsrsrs
adorei o blog
vou vir aqui sempre agora

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