domingo, 3 de fevereiro de 2008

Ela era ela, era elas

Não que gostasse exatamente, era mais como um não-ter-escolha, sabe? Ela, quando dava conta, já estava pensando e revivendo; já estava vivendo do passado outra vez. Vivia tantas vezes que ia à exaustão, ao cansaço, ao enjôo. E não tinha outra escolha, ou, pelo menos, assim achava. Isso a fazia cansar de tudo o que vivia antes de completar um mês. Porque esse único mês era para ela a soma de quase 10 anos.

Já virava rotina, sem ter sido repetido, porque ela revivia a mesma coisa tantas vezes que, antes que acontecesse outra vez, ela queria inovar e sair da vida parada e comum que levava.

Tinha, no pensamento, tantas faces e palavras e opiniões e vidas que não sabia qual delas vestir na hora de sair de casa. Se tivesse vivido 100 anos não teria recolhido, pelas experiências vividas de fato, tanto de si.

Se tivesse realmente, carnalmente, vivenciado todos esses 500 anos que possuía, nunca teria as dúvidas que tinha. Todas as fases de pensamento e opinião e faces e palavras teriam decorrido da forma correta, uma nova tomando o lugar de uma velha de forma definitiva.

Uma Torre que come um Cavalo, assumindo sua posição. Não dessa forma louca que agora está. Não foram tomados os lugares, foram apenas sentando-se ao lado das antigas e formando assim uma longa fila.

Podia se esconder dentro de um baú e ainda assim seria encontrada, tantas eram dentro dela que jamais caberiam dentro de qualquer baú: a tampa ficaria sempre aberta.

Analisando depois, ela sempre achava que atropelara os fatos, vivera-os todos ao mesmo tempo, quando deveriam, cada um, ter seu lugar, sua hora e sua vez. Lendo seus diários, sempre repetidos e sempre tão diversos, como qualquer diário, tinha a certeza da própria superficialidade. Nem duas páginas separavam um amor eterno de outro.

Duas páginas que são dois dias. Analisando depois nem há o que pensar. Não houve tempo, nem verdade. Quem quer que o leia sabe quem é ela. Porque ela se expressa bem, mas não consegue expressar o indizível, porque o indizível não importa.

Tudo o que ela escreve vira nada depois, de qualquer forma. Para quê ela vai dizer para si mesma que duas páginas não querem dizer dois dias. Querem dizer dois dias que querem dizer 2 anos e todas as elas que puderem nascer dentro desses dois anos.

Ela que não é só ela; ela que é elas. De cabelos e olhos e narizes e orelhas e olheiras e bocas. Porque o rosto sempre sai nas fotos e nunca igual, parece outros. Tantos mil rostos e uma bem-resolvida aparência. O espelho servia bem para os seus ensaios, na verdade. Do espelho não cansava, não o revivia, não havia tempo entre um e outro encontro.

Mas, na hora de regurgitar, é apenas uma. Funde-se e regurgita com uma única garganta o refluxo de todos os seus estômagos. E dois dias tomam proporções de dois anos, e é o bastante para que canse, para que viva toda a imensidão do fato, em todas as suas proporções e durma exausta, sem vontade de continuar.

Ela que já termina o seu sorvete e outro e outro e outro, em um. E nunca mais quer o sorvete. Nem pode mais. Não pode mais porque já não consegue. E não consegue porque era ela, porque era elas, porque era gosto cansado e passado.

Um comentário:

Ananda disse...

Quem mandou fazer eu em um conto?
Sério, me identifiquei demais.
Até o sorvete! Acho que você gosta dessa imagem. E Estou começando a achar que ela é realmente importante.
Fantástico.

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