sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O caso do rapaz que não sabia sorrir.

Não tenho o saudável costume de contar os casos da minha vida, tampouco da vida dos meus amigos. Também não sou flagrado muitas vezes com posicionamentos políticos, frases de efeito ou problemáticas humano-universais. Aqueles que me conhecem bem o pentear dos cabelos sabem, antes de tudo que se possa pensar, que não sou exatamente homem de muitas palavras, sejam faladas ou escritas. Para ser mesmo sincero, prefiro passar as minhas tardes jogando baralho, damas, xadrez... enfim, algum esporte genuinamente intelectual; claro, com meu cachimbo bem disposto, que é tudo de que preciso para ser feliz.

Já vivi muito e como vi e ouvi! Contando que já estou aqui pelos anos muitos da minha velhice e, com a aposentadoria que recebo, minha maior diversão é ficar em casa, agora com menos companhia do que antes, resolvi escrever o que “o alemão” ainda não me tirou da memória. Não pensem vocês que vou me ocupar em análises profundas do entendimento humano, não dou para esse tipo de frescura. Vou contar do mesmo jeito que aconteceu, quando, não muito tempo, ainda era mais moço e recebia meu dinheiro todo mês sem precisar ir buscar pelo Governo. Deixe-me puxar pelos botões enquanto sento aqui neste banquinho, se quiser abanque-se aí que não sei do tamanho da história.

Como disse, não costumo falar dos outros, mas tem gente pra toda reza nesse mundo, isso tem. Eu trabalhava de vendedor no estabelecimento do Dr. Maurício, ele fazia lá umas poções para gripe e mal-estar e eu as vendia pelo preço estabelecido. Era um boticário conceituado, esse moço, bem jovem, talvez fosse mais velho do que eu uns 5 anos, era até agonioso chamar de “senhor” um rapazote quase da minha mesma idade; mas viveu fora, estudou, era doutor com diploma e tudo o mais. Era um rapaz dos livros, ou melhor, daqueles vidrinhos que ele tinha muitos lá.

Pois bem, uma vez foi que chegou uma senhora, pedindo logo uma consulta com o Doutor, que era caso sério e não dava para só comprar frasquinho de xarope. Eu não sou fuxiqueiro e em vida alheia não dou palpite, mas aquilo me deixou num pé e noutro. O Doutor ainda não tinha chegado de viagem, tinha ido para uma alguma-coisa-de-Universidade que eu não entendi muito direito, talvez fosse demorar ainda. E foi desse jeito que eu disse.

- Olha, a senhora vai desculpar, mas o Dotô ta não e eu acho que vai demorar ainda, viu.

A mulher não tinha outra escolha e se decidiu por ir embora e voltar no dia seguinte. Eu fiquei lembrando aquilo o dia todo, não que fosse do meu interesse. Afinal, boticário só faz remédio, se era assunto tão sério, ela devia era visitar o médico, ou procurar a rezadeira, bem podia ser coisa de encosto. Do jeito que era moda naqueles tempos um encosto vir perturbar a paz da gente, era bem provável mesmo que fosse. Resolvi que era melhor esquecer, eu não tinha nada com história alheia, muito menos, se o assunto era coisa do outro mundo. Sempre tive medo de assombração.

Acontece que a criatura não me deixava esquecer o acontecido. Ia todos os dias me perguntar pelo Doutor e nada do homem voltar para atender logo a mulher. Todos os dias ela aparecia um pouco antes do meu almoço e perguntava cadê o Doutor. Se pelo menos perguntasse feito gente decente, mas nem isso! Ela colocava uma fala arrastada de gente morrendo e fazia uma feição assim distorcida, meio desespero, meio agonia. Eu já achava que a mulher ia morrer a qualquer momento e sem me dizer qual era a enfermidade que xarope não ia curar. Ela começava com um “ei” desnutrido que quase não saía do primeiro som e, depois de olhar para baixo umas três ou quatro vezes, perguntava pelo Doutor, que não chegava nunca.

Lá pelo quarto dia eu já até esperava que a mulher-assombração aparecesse cantando sua ladainha arrastada. Terminava todo o serviço da manhã, espanava as prateleiras, reorganizava os vidrinhos de remédio e, quando já estava com o pano no balcão, vinha aquele “ei”. Eu respirava fundo, bem fundo. Sou uma pessoa muito paciente e dou opinião apenas no que me diz respeito, mas aquela mulher estava me pondo em nervos! Ataquei de bom samaritano.

- Ó, ele vai demorar ainda... quiser eu tento ajudar.

Deus sabe como foi que eu consegui falar arrastado que nem ela, mas consegui. Talvez assim ela se sentisse familiarizada e mais à vontade para me confidenciar a moléstia, qualquer que fosse. Nada. Ela fez muxoxo com a boca e foi pela porta da frente. Mas isso não me fez desistir, na verdade eu já estava bastante empenhado em saber o que tanto aquela mulher queria com o boticário.

No dia seguinte, ela atrasou um pouco e, quando chegou, nem entrou, viu que eu estava já fechando tudo para ir almoçar. Ainda pensei em chamar, mas a mulher nem fazia caso de mim. Comecei a achá-la um pouco abatida, meio com olheiras. Já estava ficando preocupado até. Afinal há quanto tempo essa mulher não deveria estar sofrendo de doença sem o boticário por perto. Tinha o médico, mas médico não é boticário. Coitadinha dela, eu bem queria ajudar. Não era só mais para saber o que era não, eu juro.

Passou assim uns dois dias e nem notícia, confesso que até me deu uma pontada de saudade da voz arrastada. Resolvi que eu ia até a casa dela para ajudar. Eu não sabia onde ela morava, mas a cidade não era grande; quando eu era moço morava numa cidadezinha onde todo mundo se conhecia e, quem não se conhecia, conhecia a Dona Nilzinha. Então, foi na porta dela que eu fui bater levando um lambedor de mel de abelha, para curar tosse, que velho sempre tem tosse e mesmo não tendo gosta de remédio que é uma coisa.

Aconteceu que eu acabei descobrindo onde morava a criatura da voz arrastada. Desconversei a Dona Nilzinha que já estava arranjando informação demais de dentro de mim, logo eu que não falo da vida de ninguém, e fui lá ver a enferma, com uma bolsa cheia de remédio. Não deu 10 minutos de caminhada, começa uma chuvinha dessas finas que a gente sempre acha que não vai molhar e acaba encharcado. Não fui diferente, achei que não ia molhar e continuei andando. Cheguei na casa da dita cuja completamente empapado, no perigo de arranjar uma gripe dessas fortes. E a mulher, aparentemente, não estava em casa.

Quem me atendeu à porta foi um rapaz, que devia ter lá seus 17 anos de idade. Um rapaz até muito corado, mas completamente sisudo. Não respondeu com gentileza a uma única frase. Não que fosse grosso ou mal-educado, é mais porque não tive a oportunidade de lhe conhecer os dentes. Por mais que mostrasse os meus em um sorriso sempre caprichado, o rapaz não devolvia. Pedi que chamasse a doente da casa e ele me olhou com uma expressão que me deixou um pouco duvidando de que tivesse acertado a casa.

- Tem doente aqui não.

Foi o que ele me disse depois de um tempo. Sem dúvida, eu tinha errado a casa. Já pedia desculpas e me preparava para sair novamente para o meio da chuva, que já estava mais forte, quando a mulher-assombração saiu de dentro da cozinha perguntando quem foi que bateu à porta. Eita, eu tive uma vontade de dar um cocorote na cabeça daquele moleque! Mas não o fiz, a mulher me olhou tão surpresa da visita que até a voz saiu menos lenta quando perguntou o que eu queria.

- Vim trazer uns remédios pra vê se algum serve pra sua doença.

- Tô doente não. É pra ele.

- Então a gente vê o que pode usar. Mas que é que ele tem? Parece doente não...

- Dotô já chegô?

- Chegô não, mas eu já to lá faz tanto tempo que sei pra que serve tudo. É verme?

- O médico disse que era não... notou que ele não sorri?

Na verdade eu tinha notado sim e aquilo me agoniava demais. Nem um sorrisinho desde a hora que eu tinha chegado. Sequer um assim meia-boca. Nada.

- Pois é. Eu acho que ele não sabe... mas o pai dele diz que é frescura de menino que tem tudo. Fica querendo ser triste. Dia desses ele disse que não tem porque ser feliz se até criança morre. Isso num tá certo, tá? Ele tá doente, eu acho.. ou então não sabe sorrir mesmo. Mas o Dotô Maurício num chega pra me dar um remédio pr’esse menino!

- Tentou já fazer cócegas?

Eu não tinha como não perguntar isso. Às vezes a família aumenta o problema, quando é bem simples de resolver. Lembro, inclusive, de uma vez que uma mocinha apareceu na boutique e... bem, deixa essa estória de lado.

- Mas já! Nem piada resolve. Ele faz que vai rir, mas nada. Nadinha! Olhe, tô contando aqui, mas espalha não que pode ficar falado.

- Não, a senhora pode deixa que eu num sô de falar da vida alheia não. Pensou já que ele pode ser meio...

- Ah não! É não! Meu menino tem o juízo certo, pelo amor de Deus! Pé-de-pato mangalô três vezes! Bate na madeira.

- Claro, não, claro... bate na madeira, isole!

- Pensei já em contratar um professor... quem sabe ele aprende? Que é que o senhor acha?

Olhe, eu achava que existia gente doida, mas esse caso extrapolou qualquer possibilidade criativa. Eu perdi meu tempo, minha curiosidade - que é pouca - , minha preocupação. Fui até o fim do mundo para descobrir, aliás, para ajudar uma pessoa que eu julgava enferma. Carreguei bolsa pesada cheia de remédio. Peguei chuva e fiquei gripado. E achava que ia encontrar alguém com o pé na cova e as mãos postas, só esperando pela mortalha e a benção do padre. No lugar disso, encontro um menino que não sabe esticar a boca e mostrar os dentes. Foi que lembrei da Dona Nilzinha. Lambedor de mel de abelha resolve tudo, segundo ela. E foi o que eu vendi: três vidrinhos de lambedor de mel de abelha. Nada de professor.

- Basta três vidrinhos, uma colher de manhã e outra à noite, viu. Isso aí é que falta vitamina nos lábios. Três e fica curado.

Quem me conhece sabe que eu gosto de ajudar.

Um comentário:

David Herculano disse...

Impossível deixar de sorrir quando a mulher fala "notou que ele não sorri?".
Eu não gostei do personagem principal! Eu não me daria bem com ele, tenho certeza... Eu digo, o narrador.
Mas o texto está ótimo! Lógico, dur! :) E eu simpatizei com o cara que não sorri! humpf! ;)

bjos!

Histórico


as primeiras ideias...