domingo, 23 de setembro de 2007

Palacete

“Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim...”.

A voz rasgada era despejada sobre a sala, sobre o mau-gosto da mobília, sobre as aranhas e sobre as teias, sobre os tapetes baratos e carcomidos, sobre os vasos com remendos grosseiros, sobre as flores de plástico em arranjos desfeitos e sobre a poeira que quase escondia as fezes das moscas nas gotas d´água, simuladas com cola-isopor. Nos quadros desconhecidos, a voz se chegava, desordeira, e bagunçava com os cupins das molduras estragadas, penetrando pelas falhas e se apresentando às pinturas, sem saber se por ali se instalava ou se ia dar umas incertas pelo mofo que se tornava visível nas cortinas finas que deveriam estar esvoaçando, como qualquer outra cortina fina.

Todas as janelas estavam fechadas, lacradas, há tanto tempo que já não havia como identificar a hora do dia, da noite ou se o barulho abafado e crepitante era de uma chuva ou apenas a vitrola apontando a própria velhice. A umidade jamais poderia ser identificada como um indício a favor da chuva, posto que, as portas, também, não tinham a rotina de serem abertas para que entrasse um mínimo de qualquer-coisa naquele lugar. As infiltrações não se faziam notar aos mais desatentos, tampouco aos mais poéticos, não que o cômodo recebesse muitas visitas, na verdade, desde o fim dos anos 90 ninguém se aventurava a passear por ali, ou fazer companhia para a pessoa que lá vivia, seja lá quem fosse essa pessoa, mas porque elas se confundiam com a decoração. Entre as flores amareladas-de-velho do papel-parede, eram traços que oscilavam entre o grosso e o fino, eram rios que desagüavam em algum rasgo ou pedaço desgastado de uma e outra flor mais desabrochada ou mais manchada.

Cartola drogava-se na agulha da vitrola. E largava uma voz de bolero cubano, caindo pelos cantos da boca e rasgando a resistência que viesse. A cachaça vibrava o ar em ondas de som materializado, sentado à cadeira velha de madeira talhada; à esquerda do aparelho, à volta do aparelho e jorrando notas no teto, nas paredes, no chão, nas portas, nas janelas, nos bichos; confrontando-se com os móveis aristocraticamente distribuídos em ângulos não-calculados de um quadrado invisível. Pairava pelo sofá grande e puído, sentando-se, encostando-se no desgastado e rasgado tecido vermelho-velho-e-abstrato que cobria o assento e o encosto; simultaneamente, descia às pernas amadeiradas e comidas, deslizando nos fios d´ouro-falso que pretendiam desenhos nobres e refinados.

Podia-se projetar um corpo estendido no chão manchado de tempo e cobrir-lhe as têmporas e o juízo com notas embriagadas de um amor que se asfixia de saudade. Podia-se lançar-lhe ao lado um copo quebrado e restos de whisky barato; um e outro cubo de gelo derretendo-se sob a pressão mortificante da música que nunca mais terminava. O ar vibrava sobre o corpo: uma das pernas sobre o tapete duma cor estranha e desconhecida, a outra em posição não regular, de quem dorme, escapando para cima do banco-para-pés, cor de sabão velho. Tudo destoava do lugar, e tudo combinava com a música. Um palacete de único cômodo, velho, puído, estragado e desgastado; de beleza escondida e encardida. Possuído pela voz furante do velho que entrara sem chegar, o viciado da vitrola, espalhando-se em tons de rasgo derramado, feito baba, feito raiva de cachorro sem vacina, feito gente que não sabe o que quer.

E ia, esse som que a gente até poderia tocar, pelas paredes, cheirando o mofo das flores-amareladas-de-velho, conhecendo os cantos e rodapés, até, enfim, chegar ao seu ninho de álcool envelhecido muitos anos nos tonéis de madeiras diferentes e escolhidas por algum doente especialista em bebidas. Protegia suas garrafas, do corpo jogado no chão, ali do outro lado daquela sala estranha do século passado. O corpo, projetado pelos sons dos instrumentos de corda que pousavam no vinil inquieto, estava tão real, neste momento que já passou. Era de osso e carne e whisky. De juventude, de pele esticada, de rosto limpo. Fazia inveja aos desenhos e detalhes do lugar e o lugar o embriagou em terror, história e lassidão. E o Cartola só zombava do coração que não batia, do jardim adubado de mofo e infiltrações e das visitas que não chegavam. O Cartola aproveitava, agora, teria o whisky e a cachaça, teria a agulha da vitrola e poderia drogar-se até acabar a música.

8 comentários:

Anônimo disse...

Não me canso nunca de ler as coisas que você escreve!!!
Muito envolvente... você tem o dom mesmo das palavras!
E o palacete, apesar de velho e abandonado chegou a me inspirar uma certa simpatia... ainda mais com a música de Cartola se derramando por ele...

Normy Malk disse...

O palacete me parece velho, me parece gasto, me parece mofado pelos dias que passou ali fechado, e me parece tanto com o espírito humano... O espírito velho e desgastado, não pela idade, mas pelas mesquinharias da própria humanidade, e embreagado muitas vezes por seu próprio vício de solidão... O palacete, fechado à tanto tempo e tão cheio de mofo, vazio à tanto tempo só vê os velhos ecos da música de Cartola... Não é tão diferente... Não é nada diferente!

Anônimo disse...

showww!!
so pra naos er chantagiado!
uhauhauha

=*******************~~~

Anônimo disse...

O.o

Bek pra ABL \~/

Marcelo Mesquita disse...

viajei legal no seu texto. antes de vc tocar no nome do cartola eu tava imaginado o cenário perfeito pra musica low do REM hehe subjetividade eh foda neh???

ah.. sazonal é ótimo viu?!?! melhor definição impossível!!!

Anônimo disse...

oi =D

nada disse...

Me senti melancolicamente íntimo do ambiente que descreveste tão delicada e minuciosamente...

Thorin disse...

Pode ser velho, gasto, mofado...

Mas ele tem um tom familiar, carismático. Ainda mais com Cartola preenchendo os espaços vazios...


Só precisa de um pouco de cuidado. E mais música...


Bek, vc escreve muito!


=********

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