domingo, 8 de julho de 2007

O Sorriso da Moça

As lágrimas lhe desciam a face, manchando-lhe a ousada maquiagem. Seu rosto desenhado e redesenhado pelas seqüenciadas decepções. O leito, o pátio, o leito improvisado, em pé, deitado, já não lhe aprazia. Seus olhos contornados do negrume borrado, inchados e sangrentos, os cílios molhados. Os olhos maiores e mais degustadores. Sua boca enrubescida do batom vermelho mal retirado pelos lábios friccionados aos lábios, às coxas, ao peito, às costas, ao dengo, ao sexo, à raça. Rosa não se controlava e nem ao menos tentava dissimular sua loucura.

Rolava no chão de pétalas murchas e mal distribuídas. Urrava. Não ódio, pois que não era ódio o que Rosa estava sentindo. Algo confuso, algo de decepção, algo de desistência, algo de insônia, algo de medo e de alguma-outra-coisa. Transpirava esse algo que largava em sons pelo pátio pequeno do condomínio. Não se notara sozinha, estava sonâmbula na decepção de outro gozo imperfeito. Aturdida às tantas-horas da matina, largada na própria saliva e em suas vestes descompostas e parcialmente jogadas pelo chão.

Lembrava em lampejos os inúmeros casos e as inúmeras vezes em que buscou o deleite do contato íntimo e sofria, ali, deitada, como sofrera o Cristo virgem na cruz dos ladrões. Ele sofrera com resignação, por um bem maior e assim ela sempre fizera. Sofrera as mais atrozes dores, de objetos e de sentimentais fatos, em prol de um regozijo jamais alcançado.

Perdia-se, agora, em momentos tão claros que desfilavam à sua frente, passeavam pelo pátio, entre as rosas, sobre a Rosa, indiferentes à presença dela ali. Via seus cachos curtos e repicados balançando ao som da sua gargalhada, sua camiseta branca com uma alça displicentemente caída ao ombro e seu rosto livre de qualquer contorno maquiado.

- Ei, Rosa, quero falar com você.

- Só se me pagar um sorvete.

Lá se ia, com seu ar nunca sério, de um deboche inocente que não escarnece nem menoscaba. Tinha um rosto de menina brincante e saiu abraçada ao ombro do incauto desavisado que era o convidador.

- E o meu sorvete?

- ´Tá. Chocolate, né?

- Não, biscoito, com cobertura de chocolate.

Ela gostava mesmo era do sorvete de chocolate, mas gostava de discordar, pra se sentir dona da situação. Ou gostava de discordar pra discordar. Tudo isso que todo mundo sempre diz de ser imprevisível e não consegue praticar. Ela não era mais isso ou mais aquilo, era autenticamente comum, como todas as outras meninas. Costumava nunca perder-se em divagações e ir direto ao que interessava: o sorvete.

A cena ia se tornando difusa, mistura de brisa e orvalho, e dava lugar a uma outra época, outra idade, outra Rosa. Um mascar ruminante, sem digerir e sempre voltando aquele gosto à boca, gosto de degustação repetida. As Rosas quase se cumprimentavam entre uma e outra alucinação e, do forno microondas, o cheiro da pipoca já vinha forte para acompanhar às cenas que se seguiam, sem qualquer possível percepção de lacunas entre elas; a lógica, qualquer que fosse, apenas a Rosa saberia, quando voltasse às suas saudáveis faculdades.

O cheiro forte da pipoca de microondas que vinha daquela caixinha branca, com aquela janelinha por onde Rosa olhava a vasilha girar e os filhotes nascerem. Aqueles muitos ovinhos amarelos de onde saíam as pipocas. As pipocas não gritavam, nem pareciam sentir dor e eram saborosas. O pai colocava todas na vasilha branca com desenhos de passarinhos e derramava manteiga-derretida em cima, ficava tão bom. Mas Rosa gostava era de ver o pai fazendo as pipocas, no forno microondas. Sentava no colo do pai pra assistir ao filme.

- Minha princesa!

Era assim. Todos os dias. De manhã e todas as horas.

- Hora de acordar, princesa.

- Vamos passear, princesa?

- O que aconteceu, princesa? O que está fazendo?

Sempre assim.

Via-se outra Rosa. Via-se incerta, convencendo-se da própria beleza tranqüila, indo conversar mais afastada do grupo, logo ali, atrás do carro. Via-se mexendo nos cachos, prendendo os longos cachos castanhos, soltando os castanhos-cachos-longos e pondo-os por trás da orelha direita, sempre a direita. Eles, os cachos, enganchavam em seu brinco e voltavam para a frente da orelha, por cima da bochecha, quase corada, e ,quase, cobrindo os olhos-de-cílios-sutilmente-destacados. O caminho até o carro, passando pelo chão úmido e pelos lances de luz vindos dos postes, cruzando as folhas secas que caíram das árvores e mesmo as próprias árvores que balançavam em movimento coreografado pelo vento, era, por si, balé de passadas e bamboleios, repensados, nos quadris.

Em um pulo do tempo disfarçado de gato dengoso, passando por sobre as pedras e as plantas dos canteiros, esgueirando-se dentre as Rosas e observando com aquele olhar de desaprovação velada que os gatos todos têm, via-se de olhos e pernas e braços e mãos e cabelos e seios beijados e extasiados. Via-se tomada à força voltando da escola. Via-se lutar contra as mãos e os lábios que a mapeavam; E confrontar-se entre o inevitável prazer e o religioso pecado do crime; E deleitar-se, largando-se nas forças daquele desconhecido.

Ah, via-se como só se sentira uma vez e tornava ao urro dramático. Jamais souberam do ocorrido, pois que Rosa sentia falta e não pretendia punir, mas, sim, reencontrar. A princesa do pai cresceu e não virou rainha. A não-rainha agora, rolando no chão, enxovalhada, rasgada, destruída e dramática, estrelava um filme de quinta categoria, com gritos de desespero e choros esganiçados. Tinha uma mente deturpada que distorcia as mais simples materializações do imaginário humano: um livro, um pente. Tudo era ponto de partida para uma alucinação pervertida.

Era, agora, a Rosa de cintas-liga, de cabelos longos, de unhas vermelhas, de pernas compridas, de festas, de bebidas, de cigarros, de homens e de mulheres. Viajou no tempo e cortou sua história, encontrou já a Rosa de sorrisos sedutores e gozos aturdidos. Olhava essa Rosa imponente-impotente com tristeza e com curiosidade. Saber os motivos e as razões.

Tantas e tantas e tantas formas e livros-e-preces-e-cores-e-sabores-e-gestos-e-sexos-e-espécies-e... tanto. Sua maquiagem desfeita em todas essas tantas experiências, não lhe dizia o total prazer. Eram gritos e unhas e dentes e respirações entrecortadas, a falta da respiração. A carne que buscava o sorriso da primeira visita, já machucada, já calejada, já visitada por tantos e estranhos transeuntes e seus variados objetos.

Uma rosa enrubescida, de espinhos caídos e caule frouxo. Rosa ainda buscava. Insistentemente buscava, mas nunca encontrava. Sentia-se dolorosamente, de uma dor ardida, de uma dor cortante, furante, trucidante, destruída pela busca. Gritou, urrou, caiu. A manhã encontrou um jardim de rosas murchas e Rosa rasgada e vermelha, como o chão sob si. Uma ninfa. Uma louca. Era a virginal vermelhidão dos prazeres de Rosa. A Rosa dos sorrisos e prazeres. A Rosa não satisfeita.

22 comentários:

Ananda disse...

Parece comigo,mas só no começo,antes do conflito do ponto G.
Adoro textos que falam de um 'ela'.

Anônimo disse...

tssssssssss *pega fogo*
Pobre Rosa... :~~

(Y)*-*

Anônimo disse...

Algum dia ela se satisfaz. Ou não.

Anônimo disse...

gosto desses nomes, do tipo Rosa.
gosto dessa coisa sutilmente desabrochada, também.

Caio M. Ribeiro disse...

ego de homem e o espírito da coragem.

partindo do princípio de que estão separados.

David Herculano disse...

"A manhã encontrou um jardim de rosas murchas e Rosa rasgada e vermelha, como o chão sob si. Uma ninfa. Uma louca. Era a virginal vermelhidão dos prazeres de Rosa. A Rosa dos sorrisos e prazeres. A Rosa não satisfeita."

A melhor parte!

Adoro seus textos pq eles são maduros sems erem complicados demais! Não por preguiça de compreender (afinal, eu leio HP Lovecraft e cada oração dele tem umas 10 frases, e gosto muito), mas simplesmente pq é 'prático', sei lá =)

=*

Coitada da Rosa!

(hei, vem cá, aquele ali é o nelson franga? o.O)

Anônimo disse...

=)

Voltou em grande estilo né?

Eu sou terrível! disse...

Credo! Que mulher frígida! o.o
E o tom dramático entoa a decepção da pobre, que me lembra muito algumas gurias que conheço... E não, não me refiro a você, Bek, embora tenha feito a piadinha xDD

Eu gostei do texto, e de tantos outros que tu escreveu, mesmo ainda preferindo exatas ^^
Beijos, moça do sorriso mais lindo do nordeste!

ouviuasparedes disse...

caralho tá muito bommm!!!

o melhor que li até agoraaaaa!!

o melhor de todos!
adorei o fluxo do texto

"Tantas e tantas e tantas formas e livros e preces e cores e sabores e gestos e sexos e espécies e... tanto"

caralhoo !!

muito bommmm!!

adoro como vc trata o seus textos
vc realmente sabe o que tá fazendo!!
=****

Unknown disse...

A carne que buscava o sorriso da primeira visita, já machucada, já calejada, já visitada por tantos e estranhos transeuntes e seus variados objetos.


É interessante todo o sofrimento dela. O quanto ela já procurou o prazer em braços amigos, estranhos, diferentes... Vai ver que ela nem acredite mais que o prazer existe...


E eu nem preciso dizer o quanto seus textos são maravilhosos! Quando eu for pra Fortaleza, vou querer um autógrafo!

=****

Anônimo disse...

É... as vezes o que fazemos não nos traz o prazer que desejamos, porém fazemos para poder sobreviver aos percausos que a vida nos proporciona.

Ótima abordagem. Ótimo texto.
Como sempre... ^^


Beijos!

Te amo e te adoro!

Rascunhos de Anthony/Angelo disse...

o q gosto mesmo é o ritmo e as rimas derramadas pelo meio e pelas beiradas. O q gosto muito é uma história estraçalhada entre as frases fragmentadas. O q gosto ainda são as imagens criadas pela sua sensibilidade aguda e funda.
Amo o q vc escreve!

nada disse...

Desculpa por está invadindo seu espaço de comentários para agradecer o seu ao meu poema... Não tinha percebido, ou talvez percebi, mas foi pequeno demais pra me encher a mente, mas sinto algo muito pareciso quando leio algo que gosto, ou não gosto, me instiga, sei lá... Quero ler seu blog, também gosto de borboletas e seus efeitos(trocadilho bobo com o filme), mas agora estou sem cabeça, eu a perdi, ao encontrá-la, leio e comento...e deixo um comentário e não uma réplica.

Caio Marinho disse...

nenhuma que lembre agora, mas sim, linda: diversas vezes, por demais.

Unknown disse...

Bek, não sei explicar o q senti, não sei dizer se me vi ali, só sei q gostei...gostei das palavras, das cenas, imaginei td! Voltarei com mais freqüência...
bjos

Felipe disse...

ah, pois então. a cada pingo de chuva, alguém de Letras surge. é uma loucura.

Felipe disse...

hoje em dia eu só tenho um 'fake' para bisbilhotar vidas alheias em horários vagos. é foda.

Marcelo Mesquita disse...

Só uma coisa explica o texto.. talento hehe! muito bom

Dirceu disse...

Fazer comentários sobre os textos da Bek está ficando cada vez mais difícil... primeiro, porque os textos dela (e a sensibilidade para o que escrever, e a habilidade para o "como" escrever) vão melhorando cada vez mais; segundo, porque eu elogio tanto, e tão freqüentemente (porque ela é tão digna, merecedora disso), que eu tô ficando sem palavras pra fazê-lo...

Por isso, Bekzinha, minha bela, eu sou obrigado a citar malks... seu texto tá PHooooodda! Não sei descrever o que senti, mas você consegue fazer aquela "mágica literária" que faz a gente sentir, de uma certa forma, o que o eu-lírico ou personagem sente...

Beeeeeijo, querida, e os merecidos parabéns! ;****

Nina disse...

oi =P

Anônimo disse...

Nao Lembro! Como era mesmo?




Ei, me empresta uns 10 comentarios teu?

Rascunhos de Anthony/Angelo disse...

O Nordeste sorri ... é a Bek!

O talento à flor da pele irrita os sentidos dos mais toscos e faz o deleite dos apaixonados por teus textos!

Tua pessoa é inesquecível !

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