terça-feira, 21 de junho de 2011

No outro lado do existir


Era como se passasse para o lado de lá de sua existência, o lado onde era apenas isso: um existente. Olhá-lo, assim, à distância, enquanto sorvia o vício pelas passagens de sua ciência de apenas existir era qualquer coisa de completo. Não fumava apenas: erguia a cabeça e fumava-me em demoradas tragadas. Só, e apenas. Talvez por não gostar da partilha, da entrega, do desvelo. Talvez precisar inalar todo aquele dia frio, solitário de mim. Dia de quem apenas existe, de quem é. Não era como se tivesse chegado à consciência de seu próprio corpo, ou do meu corpo ausente ao seu naquele momento: era a certeza concreta de ser, independente de se perceber no mundo. Apaixonado de si. E eu, inteira, tragada por ele, sabendo que era a minha paixão que ele sorvia e era a minha paixão novamente que ele repudiava e lançava pro mundo e que, paixão que era, o rodeava, mas não se ia... desvanecia, mas não se ia.

Sentado na varandinha velha, com os pés próximos ao corpo, na posição de feto amadurecido, negava-me a certeza e a paz, tragando-me em demorados minutos e divorciando-se de mim com um ar consciente de que nada daquilo dependia da ciência dele para existir. Não daquele lado da existência em que nos encontrávamos, ele por si e eu por ele. Negava-me a proximidade, enquanto me permitia que lhe entrasse pelos pulmões e saísse-lhe, lasciva e pura, pela boca frouxa de quem não intenta.

Como quem apenas exisitisse no mundo, no meio da lembrança carente da chuva, no meio do que podia pressentir, no meio das inevitabilidades (porque existências independentes) da rua. em cada não-pessoa, uma vez que inconsciente do não-sentido pacífico de seu nascimento, em cada grão-de-tudo que tragava para si mesmo, reafirmando-se livre de toda a realidade latente que passava por ele e que se ia avenida ao longe cruzando sinais e horizontes (e capacidades óticas).

E, nessa ausência de julgamento, deixava-se ficar adentrado por mim, eu carente, eu sedenta, eu fugidia, eu oportunista, envolvendo-lhe os cabelos e o pescoço e o peito e o peito e o coração que eu percebia arritmado pelo asma e pelas limitações físicas e emocionais que só eu alcançava. E, mesmo assim, lançava-me fora e a solução era deixar-me sempre um pouco em cada entranha pela qual passasse, paulatinamente.

Observava-o e ele fumava o cigarro entre os dedos grossos a vista grossa entre as pessoas na rua. E eu esperava. Que era só quando aquele rito terminava que ele deixava de existir por si e passava a existir comigo e eu, perdida toda e embriagada na existência latente dele, podia erguer-me em realidade. E, virando para mim, dizia em tom manso, como se soubesse sempre de minha presença ao seu lado, olhando-o e aguardando que retornasse, dizia que bonito estava o céu e que eu deveria dar-me ao luxo de levantar a cabeça um pouco e perceber as nuvens, que nunca estavam pesadas como hoje. E, tocando o mindinho de minha mão como se tentasse dali tirar um nota alta de piano, reparava as minhas unhas cerradas e, brincando, pedia para roê-las já que eu toda mocinha não o fazia mais e tentava encontar os lábios e eu ria. Ria muito do despropósito. Ria mais de como ele se tornava inconsciente da própria existência, minutos antes tão contundente, tão forte e pesada sobre a minha própria.

E então ele lacrava todas as minhas questões: você fica me olhando como se nunca me conhecesse, mas conhece cada pedaço de mim como se nunca tivesse estado longe. É como uma invasão, sabia? Você me invade e vai deixando um pedaço de si em cada esconderijo meu. São esses seus olhos que eu nunca consigo apreender completamente, tão fugidios. Como se você me amasse, entende? E eu, olhando a nuvem que ele havia me mostrado na sua inquietude repentina, encolhia-me toda em seu colo e, sem voltar-lhe a vista, descobria-me uma existente, notas altas de piano soando de meus mindinhos em seus dedos grossos.

Histórico


as primeiras ideias...