segunda-feira, 7 de março de 2011

de Retalhos - pela Paco Editorial, em breve

Consigo recordar, muito claramente, de uma temporada (e quando digo temporada, quero dizer uma semana, no máximo) que passei com a família em Parajuru. E quando digo família, quero dizer algumas pessoas que fizeram parte do meu crescimento, meus pais e irmãos e uma família que, de tão amiga, tratava como tios e primas. Devia ter em torno de 10 anos, ou menos... não tão menos, sem dúvida, porque lembro de já escrever meus versinhos rimados. Ficávamos abrigados na Pousada do Lobão, nome que nunca compreendi, enquanto criança, mesmo sabendo que o dono chamava-se Lobão, que nada mais era do que várias casas iguais, enfileiradas em diversas filas dentro de um terreno vasto e, bem no centro, um chuveirão onde fazíamos a festa depois de voltar da praia. O grande atrativo era a calmaria, ainda não era praia de carnavais e de estrangeiros, e a proximidade do mar. (Lembro de catar ostras, certa vez, e de cozinhá-las, e de achá-las muito gostosas apenas para não dar o braço a torcer e razão aos adultos). O portão estava quase sempre aberto, mas eu me negava a atravessá-lo sozinha porque, no chão, ele era feito dessas tiras de cimento com buracos fundos entre uma e outra, imitando um bueiro; tinha sempre medo de prender ali os meus pés e nunca mais soltá-los. Era uma menina medrosa, sou uma mulher medrosa.

Verdade que passei nessa praia idílica grande parte de minhas temporadas infantis. Verdade, também, que a que me refiro repetiu-se todas as vezes, desde que começara a entender o jogo de palavras que lia nas páginas da biblioteca. Do que me recordo com tanta clareza, no entanto, é de um fim de tarde em que, tomada de uma repentina e inusitada coragem (talvez apenas para receber elogios, talvez a faísca de uma profissão surgindo ali), peguei minha agendinha amarela dos "101 dálmatas" e comecei a ler os versinhos infantis que criava. Esse sarau improvisado, acredito, inspirou minha chamada prima, que começou a escrever outros tantos, além dos que ela já tinha. Lembro de ter sido uma noite agradabilíssima, na qual criei várias quadrinhas rimadas e todos achavam que eu estava apaixonada e eu me deleitava com a certeza de ter a impressão de todos nas minhas mãos, ou melhor, na ponta do meu lápis.

À agendinha amarela somaram-se outras tantas agendinhas, repletas de versinhos de amor, engraçados, tristes, enraivecidos, apaixonados e, em todos eles, meu regozijo em controlar a impressão do alheio. Passei das quadrinhas rimadas a poemas longos, cheios de um sentimento que não era meu, mas que eu catava aqui e ali nos suspiros amigos, nas leituras fantasiadas de estudo, nas experiências sempre muito mais interessantes do que as minhas, nas inusitadas revelações e em tudo que eu imaginava, mas que não tinha a menor sede de viver. Sempre tive muito clara em mim a necessidade e a certeza de que os retalhos que recolhia por aí eram cortes de tecido caríssimos. Os versos, no entanto, começaram a me incomodar. Aquela minha velha sensação de controlar o pensamento de todos acerca de mim estava tão fraca, tão embaçada. Não me dava mais tanta confiança. Passei a me sentir muito exposta, mesmo não sendo meus os sentimentos. O julgamento do alheio me incomodava, preferia que não soubessem da minha existência. E parei de mostrar os versos que tecia. E parei de tecer.

Meu diário, a que chamava "sentimentário", passou a ser a única manifestação da ponta de meu lápis. E li. Li tudo o que me chegava às mãos, até descobrir as possibilidades da internet, quando comecei a ir com as minhas mãos até tudo que podia ler. E foi lendo que senti a necessidade de escrever. Não mais aqueles versos de antes. No meu "sentimentário" havia tudo de que eu precisava. E escrevi. Desta vez, tornei-me uma ladra de galinhas, de limão, de goiaba, de vivências. Apropriava-me de tudo que via, ouvia, pensava, lia, enfim, roubava para mim o que eu não tinha e, somando ao que tinha, comecei a criar frases longas em longos parágrafos, palavras-frase e frases-parágrafo e personagens incorpóreos que, justamente por isso, não poderiam denunciar minhas fontes que, incorpóreas como os meus personagens, misturavam-se à minha própria vida, ao irreal dos meus devaneios e à realidade insípida da minha rotina e tudo deixava de ser real, de ser físico e passava a um plano totalmente seguro e à salvo do que qualquer alhio pudesse pensar de mim, porque ja não existia "eu" dentro do que estava escrito. Separei-me do rastro que meu lápis largava no papel de tal forma que pude perceber que não sou um retalho a compor uma toalha, mas, sim, uma toalha, composta de retalhos.

Hoje, com essas minhas manifestações oníricas, atingi um nível dos meu sonhos inexplicável e consegui materializar meus desejos com a publicação deste livro que me foi motivo de tantas noites de insônia e de tanta ansiedade e insegurança. Mas não venci meus medos, fui impelida pela necessidade de me livrar do peso que são tantos tecidos juntos.

Libertei-me e agora tenho medo de voltar para casa.


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Libertei-me e ainda não acredito no vento em meu corpo pequeno e nos olhares que me lançam: "Rebeca Xavier é uma leitora e escritora que transcreve para a matéria o imaterial do sentimento humano, feminino, inquieto, o fôlego profundo ou asmático que acomete a alma diante das flores e dos estilhaços de uma vida que explode e implode ininterruptamente. Sua literatura tem uma vida íntima, recôndita como uma pérola. Tem segredos que somente se insinuam ao leitor — insinuar-se já é toda a entrega.". Mesmo sendo o Fernando um poeta incurável.

2 comentários:

Lázaro Barbosa disse...

Parabéns, SUA LINDA! Deus queira que você possa não ter medo de voltar pra casa, mas de não ter medo de avançar em sua jornada!

Saudações verdes

Lázaro

Fernando de Souza disse...

Tem outro selo pra ti no meu blogue, Bequita.
Beijo.

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