quarta-feira, 7 de julho de 2010

Queda

Então o que seria dela se apenas caísse?

Enquanto caminhava pela avenida movimentada, barulhenta, suja e atordoada, nem estava lá. Não percebia o ir e vir dos incansáveis e inumeráveis automóveis, o lixo nos canteiros, o mato alto a quase lhe roçar as canelas finas. Não estava lá. Olhava tudo com a imparcialidade de quem não dá importância aos tumultos, às buzinas, aos acidentes - e eram tantos àquela manhã! Desde que deixara o carro no congestionamento mais atrás, e, nele, seu esposo numa verborragia de maledicências e pragas, apenas andava na beira da avenida. Olhava para a favela logo abaixo e pensava o que aconteceria se apenas caísse.

Não imaginava cair bolando areia e capim e espinhos por entre os barracos. Nem estava lá, não via a favela também. Imaginava cair. Em todos os sentidos morais, amorais e imorais dessa expressão. O que aconteceria? Seu amado esposo teria coragem de ir-se, esvair-se, morrer-se, como tanto ameaçara nas fracas crises do relacionamento? Isso a segurou firme nos paralelepípedos muitas vezes. Mas já não tinha certeza se dessa vez também. Talvez não. Postava-se sobre o meio-fio da avenida, o limite entre os carros e os barracos com seus traficantes e seus esgotos - não era assim tão diferente afinal. De braços abertos, fazia como o trapezista da noite anterior, que buscava um equilíbrio distante e inconcluso, mas o meio-fio não balançava no ar como a fina linha que não conseguia ver de tão longe que estava do circense. Seu chão era seguro, firme e exato como matemática, mas tênue e quase sumiço afinalando-se com a erosão dos bons modos. Afinalando-se tanto e tão rápido que já sentia doerem-lhe as palmas dos pés, laceradas pela navalha de pedra por onde caminhava.

De onde estava, de onde olhava, poderia jogar-se num sopro profundo de sabedoria e planar por entre a bagunça citadina, enquanto apenas flutuava - ou caía. Como saber? Dentre tantas dores e angústias, nenhuma parecia importar-se dela agora, todas encolhidas e recôndidas, longe do alvoroço, do espetáculo circense, dos esgotos e do imperscrutável - que tão atraente estava para ela. Que romance mal escrito. Nem bem sabia situar-se dentre tantas estéticas e correntes. Não que isso fosse de muita valia no exato momento. Apenas desejava que o trânsito fugisse dela para longe, muito longe. Decidir o que seria melhor entender primeiro: a queda ou o jogar-se.

Temia a morte como a um cão feroz que, preso a uma corrente forte, rosnasse à sua passagem, privando-lhe de apreciar a própria liberdade passageira. Temia a morte como o último sopro criativo de sua leveza - como a última insistência de suas decisões. Morrer seria perder sempre a sua capacidade de indecidir, de desistir, de ser uma perfeita construção em blocos concretos. Seria atar-se a uma condição humana; impedir-se de escolher ficar ou continuar. Não, não desejava morrer. Temia a morte tanto que sentia-se tentada pela altura do viaduto onde já estava.

Lá longe vinha a voz entediada de Osvaldo, gritando por ela naquela eloquência sempre distante, sempre calada, sempre presente. Estava tão longe aquela voz grave e forte, tão longe. Na sua mente uma pedra gritava por ela, uma daquelas pedras ali embaixo, onde estavam os ratos passeando impunes pelas cascas podres de banana. Esticava os braços e gritava Ana! Ana! Amor, está me ouvindo? e se esgoelava entre o barulho dos grãos de areia e dos pacotes secos de chilito.

O que aconteceria se seguisse a sua vontade de não morrer? Além do medo a não-diversão. Não lhe parecia divertido morrer. Logo ela que sempre gostara tanto de se divertir, na sua vida por noites e noites. Morrer não parecia divertido. Ou engraçado. Poderia se jogar agora, mesmo já tendo passado o viaduto - quantos paralelepípedos são necessários para formar o meio-fio do mundo?, poderia cair lá de cima num tropeço de idéias, espalhando pedregulhos e sensações, desistências, desinências de todos os seus desejos. Queria cair, bolar riso e lodo estrada abaixo, depois flutuar poeira pelas ruas, pelos bares, festas, lugares recantos túmulos fumaças lixos luares águas bebidas enfim...

O que seria de Osvaldo com sua eloquência sempre tão calada-calada eloquência? Sentiria medo-falta dos seus ombros largos e curvos, medo-medo que os seus olhos apertados apertassem uma dor insistente. Ah se Osvaldo soubesse cair. Saberia, afinal? Morrer. Ele saberia morrer? É necessário saber morrer para se temer a morte, para se desejar cair tão intenso e redondo pelo chão asfaltado. Ah como sentiria amor de Osvaldo se caísse tão longe assim. Saberia ele cair? Só cai quem teve de se manter em pé por todo o tempo necessário - doendo os pés, as pernas e os joelhos já inchados e grávidos.

Perdia-se toda nessas dúvidas e a voz de Osvaldo lhe segurava pela mão, de volta para o carro, até que voltasse a ser a voz de Osvaldo nos ouvidos de Ana.

Um comentário:

Lázaro Barbosa disse...

O que seria da queda sem o apoio? E quando se cai nos devaneios e não se levanta, nem quando se tem o apoio mais seguro do mundo?

Saudações verdes

Lázaro

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