sábado, 5 de junho de 2010

Terceiro segredo

A cada dia, tinha a certeza de que não nascera para amar mais funda em si. Não fora feita nos moldes de Amélia, em nenhuma dimensão. Ou, pelo menos, de que não nascera para amar longamente, profundamente, apaixonadamente... eram sempre uns amares de poucos meses, uns amares de preâmbulo e de prefácio. E, se chegava às vinte e tantas páginas de um amor só, era porque, sem dúvida, essa coisa toda de segredos e convívios e olhares a atraía tão profundamente que, mesmo conhecendo sua inaptidão, mergulhava até o último suspiro de seus pulmões nada resistentes.

Conhecera-o dentre uma e outra certeza, quando já estava ciente de que só poderia mesmo experimentar de leve o contato (...)
e que depois deveria ir-se antes de converter tudo em uma memória imunda. A verdade era que se quedava numa espécie de limbo sentimental do qual nunca conseguia sair. Passava o resto dos seus dias lembrando-se daqueles parágrafos dos quais participara, com rancor do amor não sentido e não cicatrizado. Do amor torpe, torto, doente, inacabado e inapto. Do amor já excluído, de lugar já reocupado e desocupado e, ainda assim, veemente, contundente, sempre entrando nas memórias e saindo nas palavras.

Não fora moldada para amar, essa era a verdade mais angustiante, e, apesar disso, sentia essa necessidade explosiva de apaixonar-se, de perder-se, de lançar-se. Não conseguia. Nunca, mas arriscava. Sua vida era um ciclo vicioso de amores eternos, perturbadores e inexistentes. Era sempre vento que sopra, bagunça, mas não chega a ser físico-fato-concreto-destinado. O mais angustiante era essa certeza de pernas e braços e cabeça de que não alcançaria jamais esse amor com o qual tanto sonhava. Era recheada dessa certeza que saía para beber, para dançar e para sentir o corpo de qualquer pessoa um pouco mais interessante que a mediocridade, para vivenciar um pequeno hiato em sua busca tão dolorosa por um sentimento que jamais encontraria.

E era nesse hiato fajuto e dissimulado que se envolvia profundamente, embora em constante negação, em romances de frações de vidas. Não era capaz de amar, tampouco capaz de superar um amor morto. Entretanto, era, de uma maneira suja e libertadora, capaz da sedução, das atitudes, do magnetismo. Era, na verdade, o que o fazia voltar à porta dela todas as vezes, embora soubesse que ela jamais o iria querer, pois dizia não o amar e precisava amar para sentir-se limpa e precisava sentir-se limpa para vivenciar qualquer relacionamento, ainda que clandestino.

E era por isso que sempre ia embora. Apesar da repulsa, da negação, da consciência, encontravam-se sempre e acabavam entre braços e pernas inconsequentes e infindáveis. Rindo nos pontos turísticos da cidade que já tão bem conheciam e nos bares que, oraculares, prediziam a noite toda risadas, beijos, requebros e incontáveis suspiros. E ele não compreendia o que se passava pelos cabelos e pelas dobras dos pensamentos dela, mas a buscava de todas as formas, mesmo depois do sexo, mesmo depois de ter gozado tão ardentemente, quando ela negava-se a aceitar o amor que sentia por ele e isso ele não entendia, não entendia como ela poderia se sentir suja e profanada e se contrair em nojo claro e estilhaçante e ir-se embora daquela forma tão contundente se cada suspiro foi uma gota do amor que ela negava sentir, se, apesar da resistência, era perto dele que ela desfalecia toda beijos saliva calores entrega confiança, toda e totalmente desabafos. Se o procurava a todo momento com suas angústias e com suas dúvidas. Se o aceitava em seu seio e o envolvia em seu carinho quando ele a procurava apaixonado, sem querer mais saber de seus tormentos, mas apenas para dar-lhe o carinho de que ela precisava, para dar-lhe o espelho de que ela precisava para ver-se apaixonada, para ver-se amante, amando.

Ele não aceitava a fuga desesperada daquela mulher. Eram fatos todas aquelas convulsões. Eram fatos as marcas de unhas que ela havia deixado nas costas suadas dele. Eram fatos os lençóis revirados e os calafrios e a fraqueza e o constante retorno. Poderia passar por todos os braços que alcançasse, poderia viver todos os amores inexistentes que reclamava viver, poderia ainda buscar por toda a vida esse sentimento único e inalcansável que buscava e que, por Deus, só deveria existir nos seus mais torpes delírios de animal forçosamente domesticado, poderia gritar e rasgar-se e chorar e dilacerar a razão nessa caçada impossível. Poderia seguir com esse seu roteiro piegas até o esvaziamento. Sempre acabaria misturada ao suor dele, buscando-o e à sua compreensão e aos seus ouvidos e ao seu bom gosto e ao seu gosto. E ele não entendia. Era claro que escreviam-se um ao outro nas mesmas páginas, com a dificuldade de um perseguido ou de um possesso.

Mas, era incapaz de amar, ela dizia com a certeza latente no timbre da voz. Sem pena, sem desculpas. Era apenas inapta e o amava por ser ela e por existir inteiramente fora dela, por ser dela a majestade e não apenas a saudade lúdica e inconsútil. E, isso também, ele não compreendia.

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