domingo, 11 de novembro de 2007

Valente

Roberto Valente era, como bem dizia o nome, valente. Sempre o fora. Desde menino. Ou, melhor digo, desde que se encontrava apenas como um mínimo espermatozóide, não à toa conseguiu fecundar, sozinho – bom ressaltar – o óvulo materno. Milhões ou bilhões, não me lembro bem das anotações cobradas pelo animado professor de Biologia, no colégio. Sei que eram muitos, sempre o são, eu sei; sempre há um, ou dois, ou três... enfim, sempre há o felizardo – ou não – que consegue fecundar o óvulo. O que fez de Roberto o valente Roberto Valente, então? Você deve me perguntar. Talvez não se lembre você de quando era apenas um espermatozóide, o que é de se entender, afinal você ainda não tinha cérebro e tampouco poderia guardar memórias. Se, mesmo depois de um cérebro e a capacidade de armazenamento de lembranças visuais, auditivas, de tato, sentimentais e outras tantas, ainda não lembramos de muito do que nos acontece! Ou você recorda dos seus primeiros dias de vida? Ou mesmo daquela vez em que você bebeu tanto vinho que perdeu a noção do que estava fazendo – “bodou”, como se diz por aí – e falando? É, se com cérebro desenvolvido já é complicado lembrar de tudo, é de se aceitar que, sem ele, você não armazene as informações.

Eu explicava sobre a valentia de Roberto Valente, quando ainda um espermatozóide. É comum, pasmem, espermatozóides traumatizados, depressivos, suicidas, neuróticos e psicóticos – na falta de expressões melhores, uma vez que, como já mencionei, não possuem cérebro. Essa realidade toda de jovens e adultos que necessitam de antidepressivos e tantos mais, nada tem a ver com o mundo ou com as injustiças. Tudo começa no começo – com o perdão pela redundância. Todo o processo de criação, pelo corpo masculino, dos espermatozóides é complexo. Todo nascimento é doloroso, mas as pessoas pensam que só nascem uma vez. Na verdade, nascem três vezes – com muito respeito aos espermatozóides que não conseguiram fecundar o óvulo, claro, não esqueço os que desistiram, ou tiveram uma crise depressiva intensa no meio do caminho, também os que se suicidaram, pulando fora da vagina. Três, esse é o número de traumas iniciais pelos quais passa o ser humano. Uma dissertação rápida: o primeiro é o processo longo e traumático de criação como espermatozóide – aí você é metade do que será –; o segundo se passa no corpo da mulher – sua mãe – e é mais longo, tem todo o caminho percorrido do nascimento dos óvulos até o momento de sua fecundação – ainda com muito respeito aos não fecundados e aos mais –, é um procedimento demorado, já pensou? Temos ainda o terceiro que é aquele com a saudável palmadinha no seu bumbum para verificar se você está respirando e outras funções esperadas.

Com tantos traumas assim é de se esperar que apenas um – convenhamos que no máximo 5, sendo o recorde alcançado até hoje, pelo menos nos limites do meu conhecimento – espermatozóide alcance o óvulo. Muitas vezes ainda por sorte! Ou porque o fluxo estava muito forte e não teve com escapar do fatídico destino – esses dão o salário dos psicólogos e dos repórteres sensacionalistas que cobrem suicídios em geral. Ou porque, da mesma forma que conseguimos adentrar um belo transporte público na matina de uma segunda-feira, foram se embrenhando entre seus irmãos para não perder a carona. Uma fatalidade, em qualquer dos casos. Ah! mas o nosso Roberto Valente, não! Este fecundou porque tinha fibra! Agüentou tudo como um verdadeiro vencedor, como um herói, como um mártir, como um... um Valente! Claro, algumas vezes ele se encontrou quase chorando de dor e desespero por tantas provações, tantas corridas e tantos caminhos. O que importa é a sua não-desistência. Roberto Valente nunca precisou tomar antidepressivo, nem ir ao psicólogo, na verdade, ele nunca nem sentiu uma tristeza mais delongada ou uma vontade louca de chorar. Não me lembro de muitas vezes chorosas de Roberto Valente, exceto uma ou duas quedas mais feias, em caso de morte ou qualquer coisa assim. Ele só chorava quando o motivo era forte ou quando o seu organismo precisava expelir algum intruso de seus globos oculares. Na verdade, ninguém o via chorar, sabia esconder-se quando já não agüentava tanto; sua valentia o instigava sempre a enxugar os olhos e ir adiante.

A sua valentia era notável! Suportou os nove meses dentro do apertado útero – sem se queixar –, tentando demonstrar tranqüilidade. Nos três primeiros meses, portou-se como um verdadeiro lord. Não causou enjôos ou náuseas em sua mãe além dos que já eram provocados pelos hormônios que também o atingiam. Muitos pensam que valente é aquele que esperneia e não tem medo de falar, de reclamar, nem de nada. Que é isso? Valente é Roberto. Passou por tudo sem dramas: foi um embrião, depois um feto e depois nasceu. Para quê se revirar? Para quê espernear? Um dia ele sairia dali, e enfrentou tudo com extrema valentia, sem apressar a pobre da sua mãe. Mesmo quando ela insistia em comer o que não lhe agradava. Ainda assim ele recebia tudo, às vezes reclamava um pouco, afinal não podiam abusar dessa forma! Entretanto ficou lá os nove meses. Ficou até o dia em que o médico disse que ele nasceria. Não se pode esconder o fato de tantos e tantos bebês prematuros. Eu mesma nasci de sete meses, uma completa medrosa, se analisarmos pela perspectiva da epopéia que é habitar um útero. O nosso Roberto não! Esse enfrentou as fases mais obscuras e as mais tranqüilas com a mesma fibra.

Eis que nasce: um menininho mirradinho, pequenininho, magrinho e com problemas respiratórios. Que mundo injusto. Logo o nosso garoto! Logo o nosso herói! Além de tudo que tinha passado até então, ainda nascer tão fragilzinho. Teve que ficar na incubadora por três semanas. 504 horas deitado – ou menos, ou mais, não sou boa com cálculos e minha calculadora não é muito minha amiga. Claro, não poderia ser diferente, adquiriu refluxo – “adquiriu”... como se tivesse comprado, que termo mais inadequado. Talvez fosse tudo isso apenas mais um teste, pra saber da valentia dele. Aquela coisa toda de que Deus dá o frio conforme o cobertor, que a minha mãe sempre fala. De qualquer forma, foi assim que ele nasceu. Parecendo um ratinho, coitado. Ninguém esperava por essa, a barriga era grande. Foi, finalmente embora da maternidade. Já em casa, na sua nova caminha, com seus novos costumes – aos quais ele se adequou muito rapidamente – Roberto só chorava quando sentia fome. Ainda assim, só quando a fome era mesmo muito forte. Ele não era de firulas e dormia a noite toda. Exceto quando, por ventura, um sono ou outro o fizesse sujar o bercinho. Eu me pergunto um pouco se isso seria valentia ou preguiça, mas logo me calo: era a valentia de agüentar até a hora certa, que a mãe sabia qual era, de comer. Era um menino esperto, logo aprendeu a chamar a “Mãmã” e a “Bábá” sem precisar chorar, mas sem nem falar ainda. Mexia em tudo, nisso era um terror para os pais que não podiam deixá-lo sozinho por alguns minutos, coisa de criança inteligente que quer aprender logo o mundo. Não tinha medo de nada, de bicho, de chuva, de raio, trovão, escuro, cara feia, nem da cara estranha e cheia de peles da avó de muitos dentes de brinquedo.

Uma vez o tio Arlindo chegou com as sobrancelhas arqueadas, fazendo um movimento estranho com a boca, como se a língua estivesse inchando e querendo sair; os olhos saltados e estrábicos – mas o Tio era mesmo estrábico, coitado – e um som ainda mais esquisito que parecia com o que a Letrinha fazia quando os gatos da vizinhança ficavam querendo entrar na casa. Beto – carinhosamente apelidado assim pela Babá –, já com seus dois anos, bocejou e saiu andando pela casa atrás de algo mais divertido. Frustração do Tio, que tinha passado algum tempo à frente do espelho bolando uma careta para assustar Beto. Tornou-se um objetivo quase fundamental para o tio Arlindo. Pena que ele nunca conseguiu concretizá-lo. O que mais ele queria? Em se tratando do nosso garoto, era de se esperar tal reação. Enquanto as outras crianças choravam com medo dos cachorros grandes, ele afagava-lhes as orelhas. Enquanto as outras crianças dormiam com a luz acesa, ou na cama dos pais, com medo do Bicho-papão; o Bicho-papão que tinha medo dele e ia se esconder no armário. Coitado do Bicho-papão! Beto não sossegou até expulsá-lo do seu armário. Onde já se viu? No seu armário um Bicho-papão medroso! Ele que fosse procurar outro lugar para viver, estava abarrotando todas as roupas de Beto.

Uma noite, ele fez tudo como sempre: escovou os dentes, colocou o pijama, fechou a porta, apagou a luz, mas não deitou na cama. Mexeu nos lençóis, porque sabia que, para alguém que anda no escuro, o Bicho-papão devia ter ouvidos muito eficientes, então ele teria que fazê-lo acreditar que estava deitado. Então ele esperou do lado de fora do armário. Esperou por algum tempo, mas não dormiu. Não podia dormir, ele tinha que pegar o maldito bicho que estava amassando suas roupas, não agüentava mais ouvir reclamação da Babá – e ela, bem como todo mundo, não acreditava que a culpa não fosse dele. Ele só tinha 5 anos, mas já sabia o que teria que fazer. Aguardou, aguardou, aguardou. Enfim a porta se mexeu medrosamente. Quando o Bicho-papão saiu lá de dentro, com a cara amarela de medo, nosso menino pulou nas costas dele com a fronha do travesseiro e cobriu-lhe a cabeça grande e feia. Amarrou as pernas e os pulsos do amassador-de-roupas, com as cordas dos piões, do jeitinho que o Denis ensinou no filme do outro dia. Ficou fazendo cócegas até que ele prometesse procurar outra moradia e nunca mais voltar, mas aí o Bicho-papão começou a chorar e disse que só queria ser valente que nem o Beto. E o Beto disse: “Você não pode ser valente que nem eu, pq eu sou um Valente e você é um... qual mesmo o seu nome?”, mas o Bicho-papão não sabia e saiu tristinho dali. O Beto ficou com dó dele e deixou que ele levasse um brinquedo, para não se sentir tão sozinho. Entregou o que ele mais gostava, inclusive! Foi a última vez que o Beto viu o Bicho-papão e o Leão de pelúcia – aquele do Mágico de Oz.

O brinquedo, porém, não fez falta por muito tempo. Logo Beto estava interessado em outras atividades. Conseguiu convencer a Mãe a comprar um skate. Foi um pouco difícil, como eu já mencionei antes, Beto nasceu com problemas respiratórios. Era um garoto insistente e criativo, acabou convencendo o Pai e a Mãe de que um exercício físico faria bem pra sua respiração, ainda mais um exercício que envolvesse tanta emoção – ele não conhecia a palavra “adrenalina” ainda. Com 13 anos, lá estava Bebeto – como era chamado pelos amigos do colégio – com seu skate debaixo de braço, escondendo da Mãe as tantas escoriações. Bebeto não tinha medo de cair, de se machucar, de andar de skate no meio da rua, ou de passar “voando” na frente dos caras-maus do pedaço. Aquele pedaço era de Bebeto, os caras-maus que não sabiam disso ainda. Quem se preocupava era a Mãe. À toa, dizia o Bebeto, mas ela sabia que não. Sabia que toda a valentia de Bebeto não ia salva-lo de algum perigo, ia, na verdade, empurra-lo para o perigo. Ele não tinha medo de nada e isso era muito amedrontador para a Mãe. Era uma boa mãe, claro. Nunca deixava de se preocupar, nem de notar o que acontecia a seu filhinho; mas Bebeto, às vezes, achava que era exagerada. Afinal, já tinha seus 14 anos. Já era um rapaz. Por que a Mãe ainda teimava em brigar se ele ia andar de skate no bairro vizinho? Devia ser ciúme. A Mãe já devia ter reparado que o Bebeto andava suspirando pelas beiradas da casa.

Ah, que agora nosso Valente estava em maus lençóis! Nem sabia pra onde olhar quando a mocinha chegava. Fazia tanta bobagem que ela ficava com raiva dele e ia embora. Mas também! Pode ficar arengando? Pode ficar puxando a menina pela roupa? Pode falar alto e ir fazer acrobacias aterrorizadoras só pra ela ficar olhando? Ela ficava com medo que ele caísse e se machucasse. Brigava com ele. Brigavam os dois. Ela ia embora e ele ficava emburrado, depois suspirava. Ai, que queria ter coragem. Todos pararam o que estavam fazendo: Roberto Valente estava, agora, medroso? Logo o Roberto? Foi um rojão essa informação e ele nem sabia como ela tinha se espalhado de forma tão rápida. Parou de ir andar de skate. Ah! como tinha vergonha de ir pro mesmo lugar que a garotinha. Nunca sabia o que dizer. Tinha virado um bobo, um medroso, um frango. Claro, não tinha medo de mais nada, só da garotinha. Mas, também, se defendia, ela tinha aquela trança comprida que ficava balançando de um lado pro outro como um dessas foices de armadilha mortal! Ela tinha aquela franja partida que quase entrava nos olhos puxados; olhos de rasgo, olhos que rasgavam o Roberto.

Estranho como, agora, Betinho passava horas dentro do quarto. Encostava a porta e só saía se fosse pra comer. Não ia mais no bairro vizinho, nem andava mais de skate. Era tão quieto, agora. Estaria doente? A Mãe comentava com o Pai o tempo todo como Roberto estava diferente; como tinha sido rápida a mudança. Tentava perguntar o que havia acontecido, mas o Betinho não dizia nada. Estava bem, estava bem; só com alguns projetos que precisavam ser amadurecidos na mente ainda. As notas no colégio iam as mesmas, mas o Betinho quase não era mais visto passeando por aí. Amadurecendo idéias. No quarto, tantas e tantas folhas amassadas e riscadas que cobriam o chão. Uma bagunça, meu Deus, uma bagunça! A Babá marcava as horas com seus gritos pela casa. Como pode? Como pode? Já é bem grandinho, pra sujar tanto, Roberto!, ela reclamava, antes de mandar que ele juntasse tudo no cesto do lixo. Ele ia. Juntava. Amassava ainda mais. Queria queimar tudo aquilo, mas não. não seria uma boa idéia, seus ouvidos, coitados, não iam agüentar as reclamações. Ah! queria entender porque não conseguia! Nada saía bom como aquelas coisas que ele lia. Mas não queria copiar! Não, copiar é para covardes e ele é um Valente! Empertigou-se e decidiu: se não consegue escrever, vai falar, vai fazer! Não era um poço de sensibilidade, mas tinha coragem de saber o que queria. Queria buscar lá no outro bairro, sem skate nem companhia. Só ele e sua valentia. Buscar a bem quista menina. Deus, como era difícil! Mal pôde olha-la! Foi-se embora.

Uma derrota seguida da outra. Sempre. Aquela menininha, que não era mais uma menininha, ainda conseguia meter medo no nosso herói. O tempo havia passado já tão comprido e o medo daquela boca alaranjada ainda estava em Betinho. Claro, ele havia cansado do skate e, agora se interessava por outras coisas: havia descoberto o prazer da linguagem binária. Todos aqueles zeros e uns.. 010100110. Só muita valentia para passar toda uma tarde decodificando dois números! Já lá nos seus 18 anos, algumas namoradinhas no histórico. Era um rapaz até bem apessoado, nosso Betinho. Não tinha medo de chegar perto de uma garota e, muito menos, de tentar a sorte. Eram todas binárias e fáceis de decodificar. Até não era nem tanto um desafio. Betinho não era o típico garoto safado, mas não era lá nenhum santo. Seminário passava longe de suas idéias. Celibato, castidade, solidão... não eram pra ele. Aos sábados, tinha a saída de semana. Descansar da faculdade, passear com alguma garota, beber umas e outras. Conheceu um pessoal que fazia pega de madrugada. Essas corridas de carro. Interessou-se pelo esporte. Não tinha medo de nada. Era o nosso Roberto Valente. E foi dessa forma que o nosso Valente foi encarar o poste de frente. Era raso como um pires, mas a menininha de olhos rasgados ainda tinha suas esperanças e ia visitá-lo no hospital. Tanta valentia tão mal aplicada. Ela só queria que ele sorrisse. Ela só queria que ele acenasse. Mas ele parecia não se importar com ela, sempre rodeado, sempre valente, sempre acompanhado. Ela queria que ele tivesse tido um pouco de medo e não fosse ao volante por preocupações na cabeça dela. Preocupações que um pente-fino não ia tirar. Feito cobrinha que passa pelos fios de cabelo, arrepiando as sensações de medo e ansiedade. Feito ponto que não acaba a frase, feito reticências...

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